segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Comer lagarto é bom...


Eu escrevi essa piada de Saint Seiya—sim, apesar das 10 páginas é apenas uma piada—como teste das capacidades de meu tablet (um reluzente e invocado Asus TF700, armado com chipset NVidia Tegra 3) na escrita de textos mais compridos. A piada levo ao ar agora, a review do tablet, provavelmente num futuro próximo, se eu me lembrar.

Valendo  o disclaimer de sempre: Saint Seiya não me pertence, pertence ao Masami Kurumada, Toei, Ban Dai, etc, este texto não tem fins lucrativos nele mesmo, e se alguém cobrar dinheiro por estas mimosas palavras, receberá meu escárnio e será chamado de alma faminta vil, torpe e fedorenta até o dia em que a grana do Pré-Sal seja usada na expansão do metrô de Rio Branco.

Bom, sem mais delongas, a piada:




Essa aconteceu no comecinho da carreira de Milo de Escorpião como Cavaleiro de Ouro e chefe linha-dura, tal e qual o conhecemos e amamos—aquele homem mais rígido que uma viga de concreto e que de tanto andar na linha o trem não pegou: mas antes ele pegou o trem, botou em cana dez dias a pão e água no rochedo de Suinon e ainda deu-lhe uma sova de unha por andar com a chaminé suja.

Mas mesmo esse Milo tão caixias tinha dificuldades no começo, tal e qual qualquer novato. E uma das mais complicadas era entrar num acordo com a tropa, velho dilema do oficialzinho pedante, empolgado e recém saído das fraldas acadêmicas versus a malta de subalternos mais experientes, mais safos e mais safados, dos que independente de idade ou posto aprenderam a arte de enrolar superiores muito melhor do que a ler e a escrever.

E nessas, o homem foi designado para ajudar e trazer de volta para o Santuário um pelotão que havia se perdido servindo numa área de desastre, isolado já tinha semanas no meio de uma floresta numa dessas divisas de país que sempre mudam de lugar na África. Pura selva, lugarzinho sem nada, sem recursos, sem o que quer que fosse e para onde era difícil mandar provisões. Por isso mesmo, o empertigado Cavaleiro de Ouro foi para a região de mala e cuia, mas com o aviso bem dado, recomendação  direta do Mestre:

—Olhe, Milo, bote ordem nessa gente, encaminhe-os pra casa, mas por favor tenha coração: os coitados estão há quase um mês tendo que se virar por conta, perdidos, não conseguimos fazer nem o básico chegar pra eles. Então, seja severo, mas releve algumas coisas. No caso, se alguém atrasou para o serviço porque achou o que comer, deixe pra lá. Devem estar passando fome e é melhor pra nós que se alimentem e tenham força pra marchar do que se ficarem doentes.

E nessas, lá seguiu Milo para a selva, cheio de orgulho, primeiro trabalho grande. Se embrenhou com vontade, capinou sozinho uns tantos dias até achar a tropa, absolutamente perdida no meio do mato. Algo de bom: ela parecia melhor do que se esperava, meio rasgada e esfarrapada sim, mas nada pra perder o juízo. E quanto a fome, parecia que estava dando um jeito: soldados magros mas não doentes, nem sofridos nem desesperados demais, isso sem receberem que fosse um pacote de Bolacha Maria do Santuário. Milo olhou, achou por bem averiguar, descobrir o segredo que alimentava o pelotão em condições tão adversas; mais ainda que àquelas alturas sua própria ração de viagem havia acabado, e ia ter que se virar nos próximos dias. Perguntou sem rodeios pra um recrutinha com ar sofrido:

—O Mestre disse que vocês estavam sem alimento, é sério? Como estão se arranjando?

—Alimento, o senhor diz?—e o soldado coçou a cabeça—Bom, não é o pior dos problemas, a tropa é bem treinada pra sobrevivência na selva, consegue alguma coisa. Nesses lugares sempre tem bicho, a gente caça. Mas já viu, né, Comandante: dá para o mínimo, e não tem essas de escolher, é comer o que tem e pronto, sem fazer luxo: caçou galinha do mato, tem galinha, pegou peixe, tem peixe, mas se caçar urubu, morcego, vai ter é urubu e morcego mesmo. Se não for venenoso, tá valendo.

O Cavaleiro de Ouro olhou ao redor, via um tanto de bichos nada apetitosos, lesmas e minhocas no pé das árvores, besourões coloridos, lagartixas, aranhas. Alguns bem duvidosos, ou nem isso: obviamente cheios de veneno, o que era um problema dos grandes—como bom Cavaleiro de Escorpião que era, afinal, conhecia muito bem essa coisa de veneno e sabia que com isso não se deve arriscar nem em sonho. Na mão do rapaz, um improvisado espetinho de perereca crua mostrava que a situação realmente não estava pra brincadeira. Milo, continuou ouvindo atento, enquanto o soldadinho falava ao mesmo tempo em que mastigava a perereca:

—E mais, como essa é uma área cheia de feras, pra piorar tem muito bicho que come as nossas caças também. Aí não tem como esperar muito não, nem guardar pra depois: pegou, comeu. Senão perde. Tem sido assim há dias.

O graduado coçou o queixo: aquilo explicava. E de certa forma, também mais do que nunca justificava o apelo do Mestre, de não implicar com os subordinados caso estivessem comendo. Tendo isso em mente, acertou com os Cavaleiros e soldados do pelotão perdido um jeito de sair da selva: planejou de iniciar marchas forçadas do amanhecer até o cair da noite, até que alcançassem uma estrada ou vilarejo. Deixando as regras claras:

—Fiquem sabendo que vou castigar exemplarmente qualquer um que atrasar o começo da marcha, sou exigente e não achem que vou facilitar! Mas não sou burro, sei que as coisas estão difíceis e vocês precisam de energia pra marchar. Assim, quem atrasar porque estava comendo alguma coisa não vai ser castigado, mas é a única exceção que vou abrir.

Assim ficou acertado, e Milo, tanto quanto os soldados tratou de ocupar o resto do dia  em busca de provisões básicas, alguma comida que não lhe deixasse com a barriga roncando até de manhã. Viu logo que o que o soldadinho falava era mais do que verdade: caça tinha, mas era difícil pegar e mais difícil ainda de segurar. Abateu um passarinho, correu para o lugar, não achou nem pena. Tentou um peixe, mesma coisa, jacaré comeu primeiro. E mesmo o jacaré, liso, escorregadio e jogando em casa, deu-lhe um chapéu digno de Garrincha, saiu rápido pela esquerda e se escafedeu na água antes de virar jantar. Chateado, no fim do dia Milo teve que se virar mesmo com uma ou outra raiz que achou lá e cá, das amargas feito debutante traída, sorvidas com umas tantas caretas, mas que deram conta do recado.

E de manhã lá ia o homem reunindo a soldadesca, tudo pronto pra iniciar a tal marcha forçada. Não fosse por um problema:

—Está faltando gente!

Esperou bem uma meia hora até aparecer um de seus comandados ausentes: o Cavaleiro Dante de Cérbero, de ar esbaforido, cara vermelha como se já estivesse marchando desde antes:

—Muito bonito, eu não disse que não era para atrasar?! Estava fazendo o que?

E o Cavaleiro se aprumou, tomando fôlego, roupas meio desalinhadas.

—Mil desculpas, senhor! É que eu...estava comendo!

Milo não gostou da resposta: logo no primeiro dia alguém atrasa, e justifica com a única coisa que aliviava um castigo, parecia uma desculpa conveniente. Tentou pegar o espertalhão na mentira:

—E estava comendo o que, posso saber?

—Lagarto, senhor!

Bom, a resposta parecia meio condizente com a realidade: e ele mesmo não havia visto uns tantos lagartos indo para lá e para cá? Mas tinha um porém: na ocasião nem se importou em correr atrás dos bichos já que uns eram pequenos demais, outros muito difíceis de pegar, pra não citar que a maioria absoluta desfilava cores das mais suspeitas, estapafúrdias, toda a aparência de coisa venenosa que não se come. Precisava ainda conferir isso:

—Lagarto bom pra comer? E você achou um agora?

Dante embatucou por uns tantos instantes, pensou e finalmente respondeu:

—Sim senhor! Muito bom de comer, e eu comi agora mesmo!

Milo achou que era conversa fiada, mas estava meio que rendido no lance: admitia não conhecer os lagartos locais, podia ser que o outro estivesse mesmo falando a verdade. E perigava de na desconfiança atropelar as ordens do Mestre, que haviam sido tão claras: se soldado estiver comendo, é para largar sem castigo. Mal-humorado, deixou o Cavaleiro tomar seu posto na formação da tropa, conferiu apressadamente as presenças e iniciou a marcha.

No fim do dia, enquanto o pelotão exausto de andar descansava, Milo foi atrás de algo pra comer. De novo, mesmo problema do dia anterior: caçar naquele mato continuava tão difícil quanto antes, e o mais que apareciam eram uns bichos esquisitos, repugnantes ou que deviam ter veneno até nos ossos. Olhou para os lagartos, pensando que mais cedo o Cavaleiro Dante havia comido e disse que era bom: mas entre um amarelo e vermelho de tom berrante, outro azul e verde, outro roxo, outro que babava e outro que fedia, acabou ficando na dúvida sobre qual era de comer e qual não era. Esqueceu os lagartos como opção, continuou procurando algo, até pegou um par de ratos, coisa miúda mas que ao menos não fugiu dele.
Comeu um, mal carne tinha. O outro tentou guardar pra enganar a fome mais tarde, mas encheu de formiga: e aí, com os bichos revidando, mordendo a língua que mordia o lanche, se viu forçado a desistir.Acordou no dia seguinte mal-humorado, cansado e com fome. Sem paciência, tratou de juntar a tropa, hora de marchar mais uma vez.

E, de novo...

—Para tudo que está faltando gente!

Esperou, esperou e esperou de novo. Lá pelas tantas flagrou, se chegando no pelotão formado bem de cantinho, tentando não ser vistos, alguns dos atrasados: os Cavaleiros Moses de Baleia e Algheti de Hércules.

—Atrasados, eu disse que isso não pode, vão tomar punição!

—Calma, senhor!—e Moses tentava se explicar, suando em bicas—Atrasamos sim, peço desculpas, mas...mas...nós estávamos ocupados, foi uma distração, eu não tinha relógio comigo...

Nenhuma desculpa que servisse, já ia preparando a unha para castigar a dupla de sumidos. Até que...

—...por favor, o caso é que estávamos...estávamos...

—Estávamos pegando lagarto!—Algheti abriu a boca e explicou, assertivo mesmo que um tanto trêmulo. Milo bufou:

—E lá vocês estão aqui pra brincar de pegar lagarto?! Isso não é razão pra atrasar a marcha!

—Mas é que...nós...estávamos dividindo...

—Dividindo como?!

—Ahn...como? Ora...assim, tipo...tipo...comendo. Né?

De novo a desculpa de comer na hora da marcha, única que havia combinado de aceitar, e da qual já se arrependia. Bastante irritado, Milo guardou a garra e lembrou das palavras do Mestre, de que não era para punir os coitados que se atrasassem em busca de alimentos. No caso desses, então, um par de homens grandes e parrudos, dos que se imagina comendo um boi inteiro em cada merenda, terem que dividir humildemente algum dos calangos suspeitos dos arredores como se fossem um casal de mendigos repartindo uma broa velha...dava pena, a bem da verdade. Desamarrou a cara, respirou fundo, disse para os Cavaleiros atrasados tomarem seus lugares na formação e se pôs em marcha por mais um dia.

Pararam tão logo o sol se pôs, ainda enfiados naquela floresta enorme e inóspita, exaustos, com pés estourados. E fome, muita fome. Milo outra vez foi caçar: os bichos ao redor não eram diferentes dos de antes, mesma coisa, mesmos problemas, nenhuma novidade. Dessa vez não achou rato que prestasse, nem passarinho: e triste, olhou para os lagartos que ficavam ali à vontade, dando a maior sopa.

Pensou, até que uma sopa de lagarto ia bem. Lembrou dos Cavaleiros que por dois dias atrasaram a marcha por que estavam comendo lagarto: então os lagartos dali eram de comer! Decidiu que ia tirar a barriga da miséria, ia ter uma noite boa, jantando uma bela panelada de lagarto. Achou uns tantos embaixo das pedras, foi catando um por um sem nem olhar para cor, encheu a mão. E quando estava indo embora com a caça, aparece o soldadinho tristonho do primeiro dia, apavorado:

—O senhor não pegou isso pra comer, né? Esses são puro veneno, não servem! No começo teve gente que tentou e quase que morre só de por na boca um pedacinho, foi horrível! Deixa essa coisa ruim aí, Comandante, não come não!

Milo abriu a mão, deixou cair o emaranhado de lagartos coloridos. Voltava à estaca zero, sem comida e sem paciência. Frustrado, procurou alguma coisa nas árvores ao redor: tirou dois besouros mais gordos, umas lesmas, uma aranha e o grande filé da noite: um pedaço de macaco carcomido que despencou do alto, caiu da garra de alguma ave ou da boca de uma cobra menos esperta. Com isso no bucho, empurrando a tranqueirada pra dentro com um belo gole de água de poça, o Cavaleiro de Escorpião passou a noite, tripas doendo não se sabe se do inusitado jantar ou da fome que lhe maltratava.

Na manhã seguinte arrumou o melhor que pode a cara pálida de cansaço e inanição. Era valente, ia seguir a marcha custasse o que custasse, até que encontrassem uma saída daquele lugar dos diabos. Formou a tropa, queria se por no caminho o mais rápido que conseguisse.

E, de novo...

—Está faltando gente! Cadê esse bando de trastes???

Demorou para aparecerem. Quando finalmente deram as caras, os Cavaleiros Astérion de Cães de Caça, Babel de Centauro, Dio de Mosca e mais uns tantos soldados pareciam nervosos, preocupados com o que o comandante iria fazer com eles. Tanto que nem esperaram o inevitável esporro:

—Sentimos muito por isso, Comandante! Foi nossa falha!

—Até aceito punição, mas por favor, tenha misericórdia!

—Perdemos o horário, não temos relógio...e estávamos ocupados, muito ocupados desde a madrugada!

—Afinal, coisa assim leva um tempo...

—...E, bom, a gente tem visto, o senhor tem sido compreensivo com essas coisas...

—Porque, sabe como é...

E, quase que em coro:

—A gente estava comendo lagarto!

Fulo da vida, Milo aos berros mandou cada um daqueles Cavaleiros e soldados fechar a matraca e ocupar seu lugar na tropa. Ainda lhe doía no estômago a lembrança do monte de lagartos que havia encontrado na véspera, que teriam dado uma bela de uma refeição não fosse porque tinham veneno suficiente para abater a Hidra de Lerna e ainda sobrar um tanto para dar úlcera gástrica numa baleia azul. A essas alturas, por mais que se recusasse a pensar, já lhe ardia uma sentida inveja dos subordinados que sempre tinham lagarto bom pra comer enquanto ele, que mandava naquela cáfila de estrupícios tinha que se aguentar comendo besouro ao molho de lesma. Durante a marcha, a fome era tanta que mal se concentrava, sonhando com fumegantes caçarolas de répteis saborosos: por mais estranho que fosse ainda era melhor do que o que estava achando, e lá num canto da cabeça guardava em registro a informação passada por sabe-se lá quem de que carne de lagarto era sim muito boa, nutritiva e que tinha gosto de frango.

Pararam mais uma vez no fim do dia, joanetes cheios de bolhas pedindo arrego, barrigas vazias pedindo algum recheio. E, de novo já estava Milo tentando catar qualquer coisa que se comesse, sem sucesso com peixe ou ave, sem opção mais viável que as lesmas, olhando faminto para os morcegos que passavam voando no topo das árvores. Aborrecidíssimo, mastigando um ou outro vermzinho que tirava do lodo, amaldiçoava a sorte até que viu num canto Dio de Mosca, igualmente entretido na lida de catar minhocas.

Justamente um dos atrasados da manhã, que estava comendo lagarto. Lagarto. Não dava pra aguentar mais aquilo, tinha que perguntar:

—Ei, você! Escuta aqui, pode me dizer que história é essa de comer lagarto?!

Dio, muito assustado ante o chefe bravo engasgou com uma minhoca e não conseguia falar nada. Milo insistiu, tentando obter uma explicação.

—Eu sei que comer lagarto aqui não é fácil, então vai falando como é que você conseguiu comer lagarto!

Dio respirou fundo, tentou se explicar o melhor que pode.

—Então, chefe, a gente come lagarto sim, mas não era pra atrapalhar a marcha, desculpe...

— Não estou falando na marcha, estou falando no lagarto! Explica mais desse lagarto, se é gostoso, se dá trabalho pegar, que cor que é, essas coisas!

Dio fez uma cara de surpresa:

—Mas...o senhor tem interesse nisso?!

Milo explodiu, gesticulando enraivecido:

—Claro que tenho, seu retardado! Olha só onde a gente está: gastando sola de bota marchando no mato, aqui é o meio do nada, não tem nada! Levei dias pra achar o pelotão de vocês, já estamos marchando há outros tantos dias, sem nada pra nos satisfazer o básico! Nada! Já tem o maior tempo que nem vejo alguma coisa gostosa...mas nem gostosa, já tem dias que não vejo uma coisa sequer que preste minimamente! Já basta, eu estou precisando, deu pra entender?! Agora, faz o favor de responder o que eu perguntei?! Qual que é a desse lagarto???

Dio coçou a cabeça, parecia atrapalhado, ainda buscando palavras.

—Bom, se é assim...O lagarto...o lagarto é bem gostoso pra falar a verdade, todo mundo pega...No início achei que ia ser difícil, mas até que não...E a cor, o senhor perguntou de cor...bom, nada de mais, é cor comum.

—Comum não explica, quero detalhes! Descreva!

—Comum comum, nada de especial, juro! É...tipo...tipo...de prata. Mais que isso bom, sei lá...é...rosado, acho. Parece um pêssego...

Milo anotava os dados mentalmente, sem deixar escapar nada. O tal lagarto era bom mesmo, e ia ser fácil pegar: agora sabia a cor e tudo. Faltava esclarecer um ou outro detalhe, ia descobrir agora. Apertou o cerco ao subordinado:

—Muito bem, Mosca, então fala: quero saber como é que você come esse lagarto!

—Como?!—e Dio arregalou os olhos, ainda mais confuso e surpreso com a intensa curiosidade do graduado—Bom, do jeito normal, claro...O normal, o comum, como...tipo...como comendo, como todo mundo faz...

—Explica direito! Está achando que eu sei ler pensamento? Fala de uma vez como é que você come esse diabo de lagarto!

—Comendo...A gente come o lagarto...come o rabo do lagarto...É isso.

Charada resolvida, aparentemente. O rabo era comestível, não devia ter veneno. Era suficiente: largou Dio falando sozinho e saiu correndo pro mato mais adentro ainda, rumo a um canto bem cheio de pedra pelo qual havia andado mais cedo. Chegou no local, se pôs a procurar, olhos abertos, não ia deixar passar nada, ao menos nada do que realmente quisesse. Espantou uns tantos besouros e aranhas, ignorou as lesmas, mas nem aos ratos deu atenção. Foi achando os lagartos, já meio sonolentos enfurnados nas pedras no fim do dia. Examinou um a um: vermelho, não era, azul, nem pensar, amarelo e roxo, de jeito nenhum, branco, não, preto, não, verde, não, listado, não, com bolinhas, não.

Já estava quase tudo escuro quando finalmente achou, gloriosa, deitada folgadamente em cima de um toco de árvore a criatura: um lagartão bonito, brilhante, num tom de rosa pêssego misturado com prateado, tão lindo quanto um vestido de madrinha de casamento. E gordo: sobretudo o rabo, quase uma torinha grossa, carnuda, comprida, se desenrolando vadiamente por quase meio metro. Não teve dúvidas: agarrou o bicho, esfolou-o ali mesmo e com uma maestria de fazer inveja no melhor açougueiro, de um golpe tirou-lhe o rabo. Sem dar maiores pensamentos a fazer um cozido ou um refogado, deixou a fome falar mais alto e simplesmente caiu de boca no filezão de rabo de lagarto, cru e sem temperos, aplacando enfim dias e dias de quase jejum absoluto.

E...passou mal.

Ah como passou mal. Nem cinco minutos após a primeira mordida já via tudo dobrado, sentia a barriga arder em chamas, a cabeça girar. Mal se aguentando nas pernas correu pra detrás de uma moita em agonia, se desfazendo das latas do uniforme antes mesmo de chegar. Sentia-se apunhalado cem vezes por dentro, atropelado por um trem-bala, o peso assassino nas tripas ia pedindo pra sair sem dar escolha. Bem dizer virou do avesso, entornou-se de tudo quanto foi jeito, perdeu a conta de quantas vezes vomitou, de quantas vezes agachou-se em cólicas, de quantas vezes pôs coisas pra fora. Ficou assim a noite inteira: lá pelas tantas cansado, desidratado e zonzo desmoronou no pé de uma árvore próxima, calças nos tornozelos, olhos encovados, cara pálida de quem parecia estar morrendo.

Acordou no finzinho da madrugada, sentia-se gelado, fraco. Ainda cheio de dor fez um esforço em se por de pé, ajeitou um tanto as roupas, o mínimo para não ficar indecente. Tentou arrastar-se de volta ao acampamento, foi trocando passos, mal conseguia andar. Pensou na marcha forçada de mais tarde, não sabia como ele mesmo iria conseguir acompanhar o pelotão. Lembrou do jantar de mais cedo: em estado normal ia querer enforcar Dio, fatiá-lo com a unha, cuidar para que sangrasse até morrer, remetê-lo sem escalas para a execução, culpado de tentar envenenar um superior. Mas estava tão doente, tão enfraquecido, que nem raiva direito sentia: no máximo uma tristeza murcha, frustrada, pensando "Mas afinal, escolhi tanto o lagarto, então não era? Como pode??"

Assim foi, cambaleando, agarrado em galhos de árvore para não cair, ora ainda com a cabeça aos giros, ora com a barrigada aos pinotes. Milico de elite que era, conseguiu se orientar: mesmo doente, achou no céu o rumo e se dirigiu ao acampamento, precisava estar lá que fosse para passar o comando para alguém mais em condições. E assim que divisou os colchonetes, barracas e os restos da fogueirinha que os soldados acendiam todas as noites, divisou também uma cena inusitada:

Uma fila.

Soldados e oficiais do pelotão estavam lá, alinhados ordeiramente uns atrás dos outros, esperando. Alguns nitidamente ansiosos, outros animados, vários carregavam umas poucas caças mirradas, parcas frutinhas e bolotas, uns contavam restos de dinheiro, outros levavam algumas bobagenzinhas como pedaço de sabão, pente, espelho, pasta de dentes, flores, pedras brilhosas. E a fila ia longe: atravessava o lugar de fora a fora, dobrando atrás do saco de dormir do comandante, passando pela fogueira apagada, se embrenhando atrás de umas árvores e finalmente desembocando em uma das poucas tendas mais distantes do ajuntado, uma fraca luzinha de lamparina acesa marcando o destino. Misterioso pra dizer o mínimo.

—Que é que é vocês estão fazendo?

A pergunta, mesmo na voz debilitada que Milo tinha na hora, ainda fez um efeito sensacional: todos os presentes da fila dando um salto apavorado, em quase perfeita sincronia e logo a seguir disparando na corrida, em pânico, para o lado que o nariz apontava. Ficaram pelo chão as caças e frutas, moedas, buquês, testemunhas mudas do desespero da tropa ao ouvir a indagação do chefe sempre bravo. Junto dos objetos, caído no atropelo desesperado, o pobre Dio de Mosca que havia conversado com Milo ainda mais cedo: o informante errado de cardápios e responsável por todo aquele piriri.

Sim, queria matá-lo, e queria que fosse com dor, muita dor. Mas, tão arruinado estava que o máximo que fez foi crispar a testa, estufar o peito como pôde e erguer o dedo. Para nada, apenas buscando atenção:

—Dio, acho que a gente precisa conversar. O que você fez não se faz...

Dio travou mudo e gelado, cheio de pavor; tal e qual uma vítima de ataque de fera tentava se fazer de morto para não morrer de verdade. Preocupação desnecessária: o Cavaleiro de Ouro não estava para briga.

—Mas fica para depois...para quando a gente sair daqui, vou me lembrar dessa sua brincadeira, não agora, depois...Agora só me diz uma coisa: que fila era essa?

Olhou Dio fixamente, lá das profundezas das olheiras macilentas esperava resposta. O Cavaleiro de Mosca, ainda travado empurrou para fora um mero cacho de palavras quase desconexas, dito em voz sumidiça.

—Lagarto...Viemos por causa...

Agastado, o Cavaleiro de Escorpião se pôs mais em pé, a irritação lhe dando um resto de cores no rosto e forças para esbravejar:

—Lagarto?! E você insiste nessa coisa?! Eu devia era rasgar suas tripas, seu cara-de-pau! Agora fala a verdade!!

—M-mas é verdade, Comandante!—e Dio se desesperava—Essa fila aqui é...ou era...era a fila do lagarto!

—Pra comer lagarto, você diz?! Comer lagarto prata e pêssego, não é?! Comer rabo de lagarto gostoso lá naquela barraca?!

—Isso mesmo...

Foi a gota d'água. Milo não disse mais nada, apenas plantou um safanão em Dio, o jogando para bem longe de sua frente. Enfurecido, marchou pisando duro apesar do desarranjo incapacitante até a tenda com a lamparina. Sem cerimônias, arrancou as lonas num puxão seco.

E deu de cara com a singular pessoa loira cercada de frutinhas, caça, bugigangas. Evidentemente melhor nutrida que o resto da tropa, vestia só as botas e luvas do traje de combate, o resto indo à descoberto tal e qual veio ao mundo. A figura estava bastante surpresa: atrapalhada, tentou esconder as vistosas carnes rosa-pêssego com uma mochila de campanha meio vazia, que mal lhe cobria as ancas opulentas.

Ao mesmo tempo em que com a outra mão improvisava uma muito trêmula saudação militar:

—Cavaleiro de PRATA Misty de LAGARTO! Às suas ordens, senhor!

...and that's all, folks! Lembrem-se destas sábias palavras antes da hora do jantar!





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